segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sob a Marca do Dragão - Cap. 1 (parte 1 de 2)


Enquanto avançava pela vila, o dragão que tinha gravado no seu pescoço e face direita latejava-lhe na pele escondida pelo capuz das suas vestes em tons de branco e cinzento. A sua experiência dizia-lhe que outro dragão estava por perto, mas quem? Aqueles de que tinha conhecimento não tinham afazeres por aquelas paragens. Claro que havia o seu pai, mas também este se encontrava longe dali. Para além disso, este latejar tinha um quê de diferente. Ninguém conhecido em volta. Sentia-se curioso. Olhava em volta enquanto passava por uma venda de fruta. Havia demasiada gente na praça principal da vila. Ninguém em especial lhe atraía a atenção e ele também não queria dar nas vistas. Naqueles tempos em que a nova fé proliferava, quem apresentasse marcas e celebrasse rituais da antiga tradição, arriscava-se à tortura e, por vezes, mesmo à fogueira. A sua marca do dragão era mágica e tinha aprendido a escondê-la com artifícios mágicos, revelando-a apenas quando desejasse.

Ele não ligava à magia que se dizia correr-lhe no sangue, embora não tivesse forma de a negar. Nos seus vinte e quatro anos de vida a magia tinha sido sempre para si uma evidência. No entanto, não servia ou praticava a Arte. Não mais do que lhe aprouvesse. E quem lhe pagasse, receberia a sua atenção e os seus préstimos de igual forma, professasse a nova ou a antiga fé.

Decidira deixar a procura pelo dragão para um outro momento com menos movimento em volta. Rafael procurava informações do paradeiro da sua mais recente tarefa; tinha um novo trabalho encomendado em mãos. Uma história de vingança familiar tinha-o levado a um aprendizado de ódio, violência e a uma vida em que vendia o crime e a morte a soldo. Pelo menos era assim que o sentia por vezes. Seguia as pisadas dos homens da sua família. Todos eles serviam a irmandade. Viviam-se tempos tumultuosos, em que a luta pelo poder entre uns e outros se tornava cada vez mais declarada. Aqueles que como ele serviam a irmandade com as armas, faziam-no cada vez menos para proteger os que a integravam das barbáries dos povos nómadas, assim como os conhecimentos que professavam de outras irmandades e da igreja, e cada vez mais para servir interesses pouco espirituais. Mas considerava que, se as pessoas têm um caminho a percorrer na vida, aquele era o seu; a sua herança familiar.

A irmandade do amparo vestia-se com a roupagem da nova fé, que adorava um deus único e ostentava como símbolo uma cruz, garantindo a sua autonomia e alguma segurança. No entanto, o seu objectivo último era preservar o conhecimento dos antigos, face à proliferação de novos costumes e leis impostos pelos sacerdotes da nova fé. Rafael sentia-se em sintonia com o ideal, mas pensava que, à semelhança das outras irmandades, os seus membros se deixavam corromper por aquilo que esta representava e conseguia pela sua independência da lei local. O avô paterno, que mal conhecera, havia jurado lealdade à irmandade e adoptado os seus ideais desde a sua formação. A traição de um companheiro levara-o à morte, que os seus três filhos juraram vingar, mas essa era uma história que ele não gostava de lembrar, ou pelo menos o que conhecia dela. Todos eles serviram a irmandade. O seu pai e um tio, mais novo que este, haviam no entanto se desviado um pouco destes ideais. Deixando-se levar pelo ódio e o sentimento de vingança, pareciam ter colocado em questão qualquer tipo de lealdade, vendendo as suas aptidões para o ofício a quem pagasse bem por elas. Procuravam nos prazeres da vida que os seus feitos lhes permitiam comprar, aquilo que não tinham obtido com os seus actos de vingança: paz de espírito!

Rafael, no entanto, aceitava apenas os trabalhos que considerasse serem justos. Considerava-o uma questão de honra! Os tempos eram outros e ele dedicava à irmandade uma obediência que não era cega. Se a situação o pedisse, não hesitava em agir contra esta, desde que o ideal de quem o contratasse lhe parecesse mais nobre. Uma espada de dois gumes com que procurava lidar com o maior dos cuidados. Ainda assim, apesar da corrupção que muitas vezes testemunhava e as tarefas que lhe eram entregues e considerava pouco coerentes com o que era defendido pela antiga tradição, não deixava de servir a irmandade. Quanto mais não fosse por carregar a marca do dragão, protecção que tinha sido concedida à Irmandade.

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