Assim que chegou a Quebir, a meio
dia de viagem, Rafael foi ao encontro de Lucas. Era ele quem por norma lhe
pedia para tratar dos assuntos que necessitavam de atenção urgente e que tinham
a ver com a protecção dos membros da Irmandade. Lucas era o braço direito de Elias,
quem dirigia aquele mosteiro da irmandade. Rafael entregou-lhe a carta,
afiançando ter resolvido o assunto. Após a leitura desta, Lucas aparentava um ar
de consternação.
- Mais alguém sabe o que ele
ouviu. Diz aqui que um amigo de confiança lhe recomendou o mensageiro por
acreditar que, detentor daquela informação, ele se encontraria em perigo!
- Alguma pista sobre a sua
identidade?
- Nenhuma. Tens de descobrir-lhe
o rasto e resolver a situação urgentemente! O assunto não pode espalhar-se! –
disse, aproximando-se de Rafael e enfatizando a importância da resolução
daquela situação.
- Partirei de imediato!
- Conto que farás um bom
trabalho!
Rafael inclinou-se num cumprimento respeitoso e saiu de imediato.
fotografia de Sofia Morgado |
No dia seguinte, ao chegar perto
da muralha viu uma mulher sentada entre as ameias. Ele parou. Sentiu o seu
dragão voltar à vida. Só podia ser a rapariga da venda. Aproximou-se devagar,
observando-a. Parecia absorta nos seus pensamentos. Ao chegar perto dela, quase
lhe pareceu que ela dera pela sua presença. Ela agarrou no pulso esquerdo, uma
maçã rolou pelo chão e o seu punhal cravou-se na peça de fruta, parando-a. Ela
ouviu o som da lâmina atravessando a maçã, olhou para trás e levantou-se
assustada ao vê-lo. O seu pé resvalou, levando-a a desequilibrar-se sobre a
beira da muralha. Num ápice ele agarrou o seu braço, puxando-a para si, em
segurança. Diana afastou-se da beira assustada, com as mãos no peito. Depois
olhou para o homem atrás de si e recuou uns passos, afastando-se dele.
- Não era minha intenção assustar-vos!
– disse enquanto tirava o capuz.
Ela olhou a sua face e baixou o
olhar, respirando fundo.
“Não é ele! Não tem a marca!”
captou ele da rapariga.
Ele fitou-a com alguma demora e
acabou por dizer:
- Sim, sou eu.
Ela sentiu-se confusa. Quase
parecia que ele lhe lera os pensamentos.
Ele virou um pouco a face,
continuando a olhá-la e de súbito o seu dragão começou a surgir na sua pele, do
pescoço para a cara.
O queixo de Diana descaiu com a
surpresa.
- Como é que...?! – ela começou a
dizer.
- Aprendi a escondê-la para minha
segurança.
Ela pensou que se a marca era um
sinal de magia, ele tinha de facto a magia em si.
- Não sei porquê, mas tinha quase
a certeza de que seria.
Ela falava a verdade, pensou ele.
Não parecia conhecer as dicas do dragão.
- Porquê? – perguntou ele.
- Não sei. – respondeu ela
segurando o seu pulso e sentindo o dragão por debaixo.
- Talvez por o dragão vos latejar
na pele?!
- Não, quer dizer, sim... ou
melhor não sei! Como sabeis que...?
- Sempre que um dragão encontra
outro, ele parece acordar. Podemos senti-lo quando nos aproximamos. –
respondeu.
- Então é por isso... Não fazia
ideia! Nem sabia que mais alguém pudesse ter uma marca como a minha!...
Ele deu uma risada larga. A “sua”
marca! Ah!
Ela sentia-se confusa e ele
percebia-o. Ela olhou demoradamente a marca que ele ostentava na face e
pescoço.
- O que significa?
O desconhecimento que ela
apresentava sobre algo tão importante como o seu próprio dragão, parecia-lhe
impressionante. Divertido, explicou:
- É o dragão do sol!
- Aquilo é o sol? – perguntou
apontando a bola dourada.
- Hmm... – disse anuindo.
- A minha marca também tem uma
bola assim...
Ela teimava em chamar marca ao
dragão, pensamento que o levou a sorrir.
- Assim como?
- ...É um pouco diferente! –
continuou ela.
Um pensamento cruzou a sua mente
e o seu sorriso logo se desvaneceu. Aquilo só podia significar uma coisa.
- Mostra-me! – disse de uma forma
mais seca e autoritária, que ela nem notou com entusiasmo por saber um pouco
mais sobre a sua marca.
Ela tirou o punho de pele que lhe
cobria todo o antebraço e mostrou a sua marca. A bola que o seu dragão segurava
era prateada.
- Então quer dizer que a minha pode
ser a lua!? – pensou em voz alta.
- ... Sim! É o dragão da lua. –
disse, sendo o último dragão que alguma vez esperaria encontrar.
- O que isso quer dizer?
- Que não sei se deva confiar em
ti!
Agora Diana notara a diferença no
trato que ele lhe dirigia. Sentira-se novamente confusa. Deixara de olhar a sua
marca e fitava-o séria.
- Como assim?
- Os nossos dragões representam
energias diferentes... opostas...
- ...sim?
- Não sabes mesmo nada do teu
dragão?
- Sei apenas que é algo de
família, mas perdi os meus pais muito nova, nada sei das suas tradições e cultos...!
- Cultos?!
Um ameaço de gargalhada seguiu a
sua interjeição.
- Isto representa a magia que te
corre nas veias! – continuou, segurando-lhe o braço.
- Deve ser um engano. Não há
magia nenhuma em mim! – respondeu ela soltando o seu braço das mãos do
estranho.
- Não sejas tola, rapariga!
- Ofendeis-me! Digo que nada sei
e nenhuma magia possuo. Esta marca é apenas uma maldição que carrego e que
tenho de esconder a todo o custo pela minha vida! – disse irritada.
- Sei que falas a tua verdade.
Posso vê-lo! Mas vejo também que não te conheces a ti mesma! – disse ele vendo
uma chama acesa de que ela própria não tinha consciência.
- Claro que me conheço! Melhor do que vós, com toda a certeza!
E como assim, podeis vê-lo?!
- Os teus pensamentos são coerentes com as tuas palavras.
- Os meus... pensamentos?!
- Sim. Posso vê-los se...
- Vê-los?! Como...?!
- Claro! Não sabes mesmo nada da magia do dragão?
Agora sim, estava verdadeiramente irritada.
- Já vos disse que não! E ver os meus pensamentos? Como vos
atreveis?! – dizia enquanto andava de um lado para o outro - Isso é… é... um
abuso!
Impressão dele ou tinha deixado de
os ver?
- Não pode ser considerado como
tal. - respondeu.
- Como não?!
- Porque só
posso ver o que me permitires ver. Só consigo captar o que emitires. Eu não o
considero um abuso se o fizeres!
- Claro! Como se o pudesse
fazer!...
- Claro que sim! A magia está em
ti, quer queiras quer não. – respondeu de uma forma mais seca.
- Não saberia como...!
- Parece-me que já o fazes,
embora não tenhas consciência disso.
- Não me parece.
- Então porque é que não os
consigo ver desde que te chateaste?
Ela sentia-se cada vez mais confusa.
- Não fiz nada! Não saberia
como...
Ele também se sentia confuso.
Como é que ela nada sabia do seu dragão?
- Em que pensaste? – acabou por
perguntar-lhe, respirando fundo.
Ela ficou calada por alguns
momentos.
- ... Que
gostaria de correr um pano de veludo preto sobre os meus pensamentos, pois são
só meus! – acabou por dizer.
- É isso! Foi o suficiente! Encontraste
uma forma de o fazeres naturalmente.
- Não devíeis
gozar comigo dessa forma!... – tudo aquilo lhe parecia empolgante, mas de difícil
existência na sua vida.
- Estou a
falar muito a sério! Digo-te que nada leio em ti desde que te chateaste. – disse,
começando a ficar irritado.
Ela tentava
absorver tudo o que aquilo significava. Deu alguns passos afastando-se,
voltando depois a aproximar-se, olhando-o, acariciando o seu dragão em
silêncio.
- ... e se
for verdade?... Agora ficariam ocultos? ... os pensamentos?
- Por agora.
Sem treino, à medida que vais relaxando, eles vão voltando a tornar-se
visíveis.
- Como sabeis?
Ele arqueou uma
sobrancelha e ela percebeu. De súbito, o seu acesso voltou a ser bloqueado.
- Voltaste a
correr a cortina, certo?
Seria verdade
o que ele dizia? De facto, ele parecia ler-lhe os pensamentos desde que ali
chegara! E tinha uma marca como a sua! E se fosse verdade? Haveria mesmo magia
a correr-lhe no sangue?
- ... Quer
dizer que preciso ter cuidado com os meus pensamentos? Ter cuidado com o que
penso?
- Basicamente.
Diana continuou pensativa e ele
não sabia em que ela pensava agora.
- Porque tenho isto no meu
braço? – acabou por perguntar.
- Porque tens um destino traçado
pela magia.
- E qual é esse destino?
- O teu. – disse encolhendo os
ombros.
Ela ficou novamente em silêncio.
- E o vosso? – acabou por
perguntar.
- ... é o meu. – respondeu ele
de uma forma mais ríspida, querendo finalizar o assunto ali.
- Claro. – disse ela notando o
seu desconforto. - Somos desconhecidos, certo? Nem sei o vosso nome...
- ... Rafael.
Ela estendeu-lhe a mão num
cumprimento.
- Diana.
Ele estendeu o braço, segurando
a mão de Diana na sua e ambos sentiram o dragão latejar mais forte.
Ela pensou que quanto mais
próximos os dragões, mais forte era aquela sensação.
- Porque sinto isto? – perguntou
segurando o seu dragão.
Rafael pareceu não querer
responder. De facto, ele não queria falar-lhe na história dos dragões, nem no
destino que lhe estava traçado
- Já disse que um dragão
reconhece outro!
- Sim, mas...
Um pensamento
surgiu na sua mente sem que ela percebesse de onde vinha ou o que representava.
Era a imagem dos dois dragões, um ao contrário do outro, completando um círculo.
Assim como surgiu, desapareceu. Ela queria saber mais e como se seguisse o pulsar
do seu dragão, Diana aproximou o seu braço do pescoço dele, pousando a sua mão
no rosto marcado de Rafael. O seu dragão parecia ter vida. Poderia ser a sua
imaginação, mas parecera-lhe que a sua lua prateada tinha reluzido.
- E porque fica mais forte
quanto mais próximo?
- Porque eles querem a pele um
do outro...!
Uma imagem de
ambos sentindo-se um ao outro, respirando-se, beijando-se passou na mente de
Diana. De súbito, ela olhou-o nos olhos, tirou a mão, corou, baixou a cabeça,
procurando não se denunciar e... correu a cortina.
Antes do “apagão” ele captou a
imagem, sentindo-a literalmente.
- Eles querem
matar-se um ao outro! – disse, empurrando qualquer dúvida que pudesse querer
instalar-se e rematando o assunto.
Ela recuou com os olhos bem
abertos, olhando-o fixamente.
- Porquê?! – perguntou chocada.
- Porque são energias opostas.
- Mas porquê?
O que é diferente muitas vezes complementa-se. O Deus e a Deusa não são
energias opostas, mas complementares! – Disse Diana referindo-se ao sol e à lua
das suas marcas. - Não tem de procurar-se eliminar o contrário!
- A história dos dragões não é
essa!
- Contai-me essa história! –
pediu.
Ele não tinha
a mínima vontade. Era claro que ela não a conhecia.
- Por favor! – insistiu ela interrompendo
os seus pensamentos.
- ... Outro dia. – acabou por
dizer, procurando livrar-se da sua insistência.
- Por
favor... parece que há parte de mim que não conheço! Nada sei sobre o passado
da minha família! Preciso de saber mais!
- Tudo a seu tempo! Outro dia
conto, agora não! Tenho de ir. Atraso-me.
- Outro dia, então. – respondeu
ela um pouco decepcionada, vendo-o afastar-se.
Os seus
pensamentos estavam em tumulto. Lembrou-se que devia perguntar-lhe como poderia
esconder o seu dragão, como ele preferia referir-se à sua marca. Dar-lhe-ia
muito jeito se o conseguisse. Não teria de preocupar-se em esconder a garra que
teimava em estender-se quase até à sua mão, como que reclamando pela luz do
sol. Poderia até deixar que a pele do seu pulso voltasse a ter a mesma cor que o
resto do braço, pensou quase sorrindo.
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