Um vislumbre de quem procurava
levou a sua atenção para longe dos seus pensamentos. Tinha acabado de passar
por si aquele que chamavam de Mensageiro e que o levaria a quem havia escutado demais.
Deveria segui-lo. Não podia arriscar perder-lhe o rasto, pois levá-lo-ia a quem
poderia expor os reais propósitos da Irmandade do Amparo aos sacerdotes da nova
fé. Procurava segui-lo de longe, mas a quantidade de pessoas que se encontrava
na praça àquela hora do dia obrigava-o a aproximar-se mais do que gostaria. O
homem que seguia olhava em volta e parecia desconfiado. Num momento em que este
olhava para trás, Rafael desviou o seu rumo para uma rua que saía da praça. Viu
que, um pouco mais à frente, uma escada encostada lhe proporcionava um acesso
fortuito ao telhado de uma casa, ao qual subiu num ápice. Preferiu aquele ponto
de vista privilegiado. Foi seguindo assim os seus passos por cima dos telhados,
vendo-se forçado a saltar sempre que uma rua se atravessava pelo caminho. O
homem já não olhava para trás com tanta insistência. Parecia-lhe certo de que
ninguém o seguia. Mais à frente, viu-o parar junto ao ferreiro, olhou em volta
e, calmamente, entrou na rua ao lado. Era uma pequena rua sem movimento, onde
um homem parecia aguardá-lo. Rafael posicionou-se logo acima deles e, não
havendo ninguém por perto, podia facilmente ouvir o que diziam.
- Mensageiro?
- Sim.
- Preciso que uma missiva chegue
com urgência à aldeia de Cabo. Que nada se atravesse no teu caminho. Ela deve
chegar ao seu destino.
- E quanto vale essa entrega?
- Um saco de moedas. – disse,
soltando uma bolsa da sua cintura e atirando-a na direcção do outro.
O mensageiro abriu a bolsa, olhou
para esta e de novo para o outro homem.
- Disseram-me que podia confiar
que seria entregue.
- E será.
- Óptimo! Deverá ser entregue ao irmão
Carlos, no templo de Santa Catarina. – disse entregando-lhe uma carta.
O outro anuiu e guardou-a, juntamente
com a bolsa.
Era definitivamente ele. Não
podia deixar aquela mensagem ser entregue, nem perder o seu emissor de vista,
pelo que tinha de agir de imediato. Olhou em volta. Ninguém por perto. Saltou
do telhado para uma carroça que estava um pouco mais à frente e daí para o
chão. Ao ouvir algo, os dois homens olharam na sua direcção. Viram-no
aproximar-se e pareciam não perceber de onde havia saído. Ao vê-lo, o emissor
da mensagem soube de alguma forma que ele era um enviado da irmandade. Precipitou-se
na direcção oposta, mas Rafael já se encontrava próximo o suficiente e desferiu
um golpe de espada deixando-o prostrado no chão. O outro homem correu para
alcançar a rua principal, que levava à praça, mas um punhal certeiro apanhou-o
antes de o conseguir. O homem nada parecia saber sobre o assunto, mas para além
de não poder deixar aquela carta seguir caminho, tinha o cauteloso hábito de
não deixar testemunhas. Rafael apressou-se a chegar até ao mensageiro. Guardou
a carta e a bolsa e arrastou o corpo para junto do outro. Tudo continuava calmo
em volta. Lembrava-se de ter visto guardas não muito atrás, seria uma questão
de tempo até os encontrarem. Tinha de sair dali. Colocou de novo o capuz sobre
a cabeça, voltou à rua principal e misturou-se no meio dos aldeões.
Ao chegar à praça principal, a sua
tatuagem começou a latejar de novo. Pensou que fora algures por ali que a
sentira anteriormente. Olhou em volta. Pareceu-lhe que o seu dragão o levava em
direcção à venda. Parou para observar a rapariga que arranjava a fruta na
banca. Algo nela lhe chamava a atenção. Ficou atento. Era uma jovem bonita,
morena, que aparentava ter quase vinte anos. O seu olhar descansou, então, nas suas
mãos. Do seu pulso esquerdo parecia-lhe sair uma garra, brilhando, escondida
por baixo de um largo punho em pele. Ele chegou perto, agarrou-lhe a mão,
virando-a ligeiramente e empurrando com os dedos a pele que lhe cobria o
antebraço. Apanhada desprevenida, ela não conseguiu evitá-lo. A sua mão direita
foi em auxílio da outra, segurando no pulso e procurando esconder a sua marca. Mas
ele já tinha visto parte do que queria; era um dragão, embora o punho de
cabedal não lhe permitisse ver qual. Continuou a segurar aquela mão, olhando a rapariga,
procurando descortinar algo mais. Ela percebeu com aflição que ele tinha visto
a sua marca.
- Qual é o teu nome? – o estranho
perguntou.
- Diana, mas... por favor,
senhor...! – o seu olhar suplicava que ele não revelasse o seu segredo. O facto de ele usar armas à vista não lhe
parecia bom augúrio.
Ele olhava-a fixamente, usando as
suas habilidades para captar o que ia pela mente dela. Estranhava o facto de
ela parecer não reconhecer que ele também tinha o poder de um dragão.
- ... por favor, senhor! –
suplicava ela.
Percebendo a imagem do seu
receio, libertou a sua mão, que ela escondeu de imediato. Rafael colocou o dedo
sobre os lábios, pedindo silêncio e virou um pouco a face, passando o dedo pelo
rebordo do capuz. O gesto foi subtil, mas suficiente para permitir antever a
sua face tatuada.
Ele também tinha uma marca,
pensou ela. O seu queixo descaiu com a surpresa e a curiosidade suplantou o
receio de ser acusada de bruxaria. Ela levantou a mão com a intenção de afastar
um pouco o capuz do estranho e ver melhor aquela marca. Ele percebeu e segurou-a
a meio caminho. Tirou uma moeda da bolsa que tinha à cintura, colocando-a na
mão da rapariga. E ao mesmo tempo que a libertava, pegava numa maçã para levar,
afastando-se então.
- Senhor...!
Ele não parou e ela não quis
chamar a atenção sobre si ou sobre ele, já que ambos pareciam carregar aquilo
que muitas vezes considerava como uma maldição. Ela pensou que a sua marca
podia ser escondida com a roupa, mas a dele... Para ele devia ser mesmo uma
maldição carregá-la! O latejar da pele debaixo do seu dragão afastou-a daqueles
pensamentos, levando-a a ajeitar o punho de pele e a olhar em volta.
A
morte dos seus pais, da qual pouco sabia devido à sua tenra idade, levara-a a
um início de vida numa casa que a acolhera junto a outros órfãos. Na sua
adolescência, voltou a perder a figura materna, acometida por uma doença que
lhe fora mortal. Lutando com as dificuldades normais daqueles tempos instáveis,
vendia fruta na praça da vila para ajudar a levar comida para casa, onde vivia
com o seu pai de acolhimento e mais dois irmãos de criação, um rapaz e uma
rapariga; ele mais velho e ela mais nova do que Diana. Da sua marca também nada
sabia, apenas que era algo de família.
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