O latejar do dragão sob a
pele do seu pulso e antebraço chamava a sua razão para a realidade à sua volta.
Diana abria os olhos, piscando-os face à luz do dia e recordando o clarão que a
tinha deixado desacordada. Olhou em volta e viu Rafael chegando junto a si.
Recordou-se da morte que testemunhara e reagiu instintivamente, tentando
afastar-se dele. Foi quando notou que as suas mãos e os seus pés estavam
atados. Não podia fugir, pensava. Sentia-se alarmada, mas precisava manter a
calma para encontrar uma solução. Rafael tinha-lhe dito uma vez que ela o tinha
deixado desacordado. Como o teria feito? Ela só se lembrava do grito e da
imagem da noite cerrada sem luar!...
Rafael olhava-a, tentando
ler os seus pensamentos, mas Diana parecia ter-se prevenido.
- Onde estamos? O que
queres de mim?
- Precisava de pensar no
que fazer...
- O que vais fazer comigo?
- Não quero fazer-te mal,
descansa.
- E porque estou atada?
Diana sentiu-o hesitar
antes de responder. Sentia algo de diferente em Rafael, mas não percebia o quê.
Também não se sentia mais alarmada, apenas curiosa, o que lhe causava
estranheza.
- Precisei afastar-me um pouco...
não quis arriscar chegar aqui e não te encontrar. - disse enquanto
desembainhava o seu punhal e chegava mais próximo.
Rafael baixou-se e cortou
a corda que atava os pés de Diana, aproximando-se de seguida para cortar a que
prendia as suas mãos. Cortou-a, mas não se afastou. Continuava a olhar Diana,
enquanto o punhal voltava à sua bainha e Diana esfregava os pulsos. Os olhos de
Diana pousaram, então, nos seus e ali ficaram por algum tempo.
Diana sentia o seu dragão
latejar mais do que alguma vez sentira. Desta vez parecera-lhe ver, pelo canto
do olho, o sol do dragão de Rafael reluzir. Olhou o dragão. Nada acontecia, mas
voltara a sentir-se alarmada. Voltou a olhar os olhos de Rafael e encontrou-os
pousados na sua boca. Rápida e quase instintivamente, Diana desembainhara o
punhal de Rafael para o encostar à sua garganta.
Rafael não o esperava,
encontrava-se distraído, pensava. Ainda assim, como ela o conseguira fazer sem
que ele o antevisse? Não sentia no entanto qualquer agressividade da sua parte.
Diana empunhava o punhal
com as duas mãos, empurrando-o ligeiramente para que ele se afastasse. Rafael
colocou a sua mão sobre as de Diana e forçando a lâmina contra a sua pele.
Diana contraiu os braços de imediato, puxando-o de volta. Rafael sorriu.
- Tu não queres fazer-me
mal!
Diana hesitou na resposta.
- Verdade. Não quero. Mas
não hesitarei em fazê-lo se necessitar de me proteger!
- Não duvido! - respondeu
Rafael sorrindo ao mesmo tempo que levantava as sobrancelhas - Se quisesse
fazer-te mal já o teria feito. Não é meu hábito deixar testemunhas!
Dizendo-o, levantou-se,
afastando-se dela. Diana continuou de punhal apontado na sua direcção, até
considerar que este se encontrava a uma distância segura. Levantou-se, então,
baixando o punhal.
- Hábito?! Isso significa
que costumas andar por aí a matar pessoas!?...
- É tempo de conheceres
mais sobre a responsabilidade dos portadores do dragão...
Diana aguardava, ansiosa,
as suas palavras.
- O dragão e os portadores
do seu poder servem e guardam a Irmandade do Amparo. A Irmandade cobre-se com
os símbolos e roupagem da nova fé, mas o seu verdadeiro objectivo é proteger os
conhecimentos dos antigos, o que é perigoso nos tempos que correm. A nós
cabe-nos proteger os seus membros e pôr fim às ameaças que sobre eles possam
pender. As missões são-nos entregues para serem executadas e não nos cabe a nós
avaliar o seu alcance!
Mas Diana não podia evitar
avaliar o alcance daquelas palavras e o tipo de missões que seriam encomendadas
aos guardiões.
- Cada dragão-elemento
fica residente na sua respectiva célula da irmandade - existem 5! O dragão da
terra encontra-se na célula que fica a Norte, o dragão do fogo na que fica a
Sul, o do ar a Este e da água a Oeste. Os dragões do sol e da lua circulam por
todas as células, de acordo com as necessidades, reportando à célula central.
- E que tipo de missão era
esta? - perguntou Diana.
Rafael permaneceu alguns
momentos em silêncio, pensando no que deveria dizer.
- Este trabalho não foi
pedido pela irmandade. - dizia, olhando-a atentamente.
Diana permanecia em
silêncio, julgando ter sido um crime a soldo. O que a tinha feito pensar que
podia confiar nele? Não se lembrava mais.
- Foi um pedido
particular... - continuava ele - de uma mãe que queria ver terminados os abusos
constantes a si e às suas filhas, perpetrados por aquele sentinela arrogante!
- E o que recebeste em
troca?
- Um medalhão que pode
valer uma boa cama... e néctar!
- Essa irmandade não
providencia cama e néctar os seus guardiões?
Acaso a sua expressão não
o indicasse, o tom da sua voz deixava transparecer o seu desagrado. Rafael
sorriu, aproximando-se e estendendo a mão enquanto olhava o seu punhal, ainda
na mão de Diana.
- Como saberei se posso
confiar em ti? Ainda há pouco me encontrava de mãos e pés atados!...
- Porventura não te
soltei?
- Como posso confiar em
alguém que é pago para resolver problemas pelas armas?
Rafael continuou a
aproximar-se, chegando junto a si.
- Que risco corro? Tu
também tens uma marca da magia na tua pele. Arriscar-te-ias a contar algo?
Diana olhou o seu pulso e
ele continuou como se concluísse um outro pensamento.
- Com o poder do dragão da
lua!... Chegará o momento em que o teu serviço será cobrado.
Diana permanecia em
silêncio. Tal perspectiva deixava os seus cabelos em pé.
Rafael voltou a estender a mão, desta vez junto da sua, e o punhal
foi-lhe devolvido, voltando à sua bainha.
- Como posso esconder a minha marca? - perguntou Diana com os
olhos postos no seu pulso, afagando-o com a outra mão.
Diana levantou o olhar e observou-o em silêncio, até que ele respondeu.
- Pensa no teu dragão a recolher-se no interior do teu corpo.
Ela desatou o punho, descobriu o pulso e olhou o seu dragão,
fixamente, por algum tempo.
- Nada acontece!... - disse finalmente.
- Calma. - respondeu ele, levando a sua mão à de Diana e
segurando-a - Fecha os olhos.
Diana olhou-o demoradamente.
- Fecha os olhos! - repetiu.
Decidiu confiar, fechando-os.
- Vê nos teus pensamentos, o teu dragão espreitando através da tua
pele. Consegues vê-lo?
Ela anuiu silenciosamente, sentindo a mão de Rafael formigar sob a
sua e um estranho formigueiro subindo pelo seu pulso.
- Agora vê-o recuar dessa espécie de janela, para dentro do seu
abrigo, recolhendo-se, escondendo-se. Até tu deixas de o ver!
Rafael não precisava perguntar mais nada, podia ver os seus
pensamentos e podia ver o dragão da lua desvanecer-se sob a pele do antebraço
de Diana.
- Agora que o teu dragão se recolheu às profundezas do seu abrigo,
abre calmamente os teus olhos.
Diana abriu os olhos e olhou Rafael. Este sorriu indicando-lhe que
olhasse para o seu antebraço. Diana fê-lo e sorriu maravilhada na ausência da
sua marca. Voltou a olhar Rafael. Ele devolvia-lhe a atenção. Também podia
sentir a energia fresca de Diana.
- Já sabes que consegues e como o podes fazer. – acabou por dizer.
- Consegui porque me ajudaste! Posso senti-lo!
Após um olhar demorado, Rafael largou a sua mão.
- Sentiste a minha energia a ligar-se com a tua. Só potenciei
aquilo que se encontra em ti! Tu consegues fazê-lo! O poder do dragão corre nas
tuas veias! – Terminou olhando novamente a marca do dragão Diana.
Diana voltou a olhar a pele
do seu pulso e voltou a sorrir pela ausência do seu dragão. Este apareceu de
imediato, desvanecendo-se o seu sorriso.
- Vês?! Desapareceu!
- As nossas energias já não estavam ligadas. Eras tu a fazê-lo! Só
tens de treinar a tua concentração e confiar em ti mesma.
Na mente de Diana, surgiu uma imagem que lhe era familiar: a de
ambos beijando-se, sentindo-se mutuamente. Rafael captara a imagem. Olharam-se
demoradamente. Ele aproximou-se ainda mais e, num ímpeto, dirigiu os seus
lábios aos dela. Diana respondeu ao seu avanço sem pensar, devolvendo-lhe o
beijo. Sentiu não o controlar.
No momento seguinte o seu coração falhou um batimento. Ela
assustou-se, mas continuava a sentir que não o conseguia controlar. Sentiu o
seu coração falhar nova batida e o ar a deter-se de entrar no seu corpo. Momentos
depois o coração voltou a bater e o ar a voltar a entrar, fresco, no seu peito.
No momento seguinte nova paragem, sem conseguir respirar, sem conseguir que o
sopro vital animasse o seu ser. E, uma vez mais, voltando ao normal. A cada
batida que o seu coração falhava e a cada respiração frustrada, o sufoco se
tornava maior, o ar mais necessário e as forças iam fraquejando, naquilo que
Diana sentia como uma luta entre os dragões, uma luta pelo ar que respiravam e
pela vida que fazia com que os seus corações continuassem a bater. Não percebia
porque o seu coração ou os seus pulmões pareciam obedecer a esta estranha luta
que parecia acontecer apenas na sua mente. Será que era apenas a sua mente?
Será que era uma ilusão, fruto da magia? Parecia-lhe deveras real! A cada
batida que sentia o seu coração falhar, ela via na sua mente o dragão do sol
fortalecer-se. Quando o seu coração batia, parecia travar uma luta interna para
recuperar as forças, o ar e a própria vida. A um ritmo que fugia à sua vontade,
esta luta arrastou-se por aquilo que lhe pareceu uma eternidade, embora
ameaçando o fim a qualquer instante.
Num esforço desesperado e reunindo todas as suas forças, Diana
conseguiu afastar-se de Rafael e quebrar aquele beijo que parecia sugar-lhe a
vida. Recuperando o fôlego e as forças, olhou então Rafael a uma distância
segura. Teria sido imaginação sua? Uma luta entre dragões? Rafael também
parecia ofegante! Sentia-se enfraquecida, mas o seu dragão vivo, em si.
Rafael não contava com o que tinha acabado de
acontecer, mas pensava que só podia ter a ver com o seu destino mágico.
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