Passado algum tempo e mais
recomposta, Diana acabava por falar.
- Porque é que os nossos dragões querem a pele um do outro? -
perguntava.
Rafael hesitou, mas não o podia adiar mais.
- Belchior, o teu avô materno, guardião do
dragão da lua recebeu uma missão com o intuito de proteger a continuidade da
irmandade. Ele tinha de acabar com a vida de um influente sacerdote da nova fé,
que desconfiava das práticas de alguns elementos da irmandade e colocava em
causa a sua existência. O meu avô acompanhou-o na missão... Esse homem foi
morto, mas Belchior desapareceu, convenientemente, e Edgard, meu avô, foi
acusado de bruxaria e morto por tal.
Diana ouvia em silêncio.
- Não conseguíamos perceber como o tinham
conseguido, como tinham ludibriado o dragão ou inibido o seu poder até que
descobrimos a razão! Era Belchior quem estava por trás da sua captura! - Rafael
apertou os maxilares, mastigando aquele pensamento.
- Mas porquê?!
- Belchior cultivava, em segredo, um outro lado
do seu poder...
- Outro lado?!...
- Ele reverenciava e servia o
lado sombra da Deusa e do seu consorte! - Rafael respondeu olhando-a, agora de
frente.
- Como assim?
- O lado do ciúme, do desejo, da posse, do ódio
e da vingança... – continuou - Provavelmente querendo o poder dos dois dragões
para si, não sei!...
- Mas o que aconteceu?
- Quando soubemos o que tinha acontecido, um
tio meu procurou o sacerdote da nova fé que tinha investigado o caso. Ele foi
até lá como membro da irmandade, pois considerou perigoso identificar-se como
familiar. Esse homem contou-lhe sobre uma profecia que dizia que um guardião
das sombras se revelaria atentando contra a fé na última Lua Negra antes de
Ostara. Estava destinado que esse guardião das sombras tiraria a vida de um
homem que semeava a fé e ameaçava o recuo das trevas. A missão foi incumbida a
Belchior e bem sabemos que Edgard nada tinha a ver com as trevas que essa
profecia refere!
- Então não sabem ao certo quem matou esse
homem?
- Belchior, claro! Só poderia ter sido ele!...
O mesmo sacerdote contou como Edgard foi encontrado junto de um cenário
aterrador e em chamas, com símbolos de bruxaria e dizendo coisas sem sentido,
debatendo-se com uma força de vários homens.
- Para esses homens as marcas que carregamos
são símbolos de bruxaria e não me parece que concordes com a sua opinião.
- Claro que não! Os sacerdotes da nova fé
diziam que ele tinha sucumbido sob o poder das trevas ou cedido o seu corpo a
um ser demoníaco. Diziam que durante o julgamento que lhe fizeram, ele parecia
por vezes conjurar algum poder malévolo, mas que o poder dessa fé foi mais
forte e o venceu. Acredito que ele estaria apenas a procurar socorrer-se do seu
poder, mas ainda sob o efeito de alguma outra magia. Não podes negar que algo
de tenebroso se terá passado!
Pela forma como ele se movimentava de um lado
para o outro e pela sua expressão, Diana notava como aquele assunto o afectava.
- Apenas sei o que estou a ouvir e digo que
ainda não ouvi nada que provasse o quer que fosse contra Belchior ou mesmo
Edgard!...
Rafael olhava-a perscrutando a sua mente, mas
ela parecia continuar de guarda. Defendia Belchior? Decidiu continuar.
- Ninguém pôde assistir a esse julgamento nem
deixaram que Edgard recebesse visita da sua família, mas meu pai procurou-o em
espírito, através do poder do dragão. E o que ele encontrou foi uma mente
mergulhada na escuridão. O que ele dizia não fazia sentido, mas repetiu algumas
vezes o nome de Belchior como se quisesse contar alguma coisa.
- Mas não sabem o que queria dizer!...
- Podemos calcular. O meu pai sentiu algo mais
na mente de Edgard... Vestígios da energia do dragão da lua! - dizia olhando-a
com atenção.
- Vestígios?
Rafael aproximou-se.
- Da mesma forma que senti a tua energia quando
me derrubaste perto da praça, naquele dia... Assim como sentiste a minha
energia há pouco. Ele sentiu a energia do dragão da lua presente na mente de
Edgard. Parecia, de alguma forma, estar sob o poder de Belchior. Foi fácil juntar
as peças... Foi um choque para todos, mas as evidências apontam para a traição
de Belchior!
Diana não sabia o que pensar, mas diversas
perguntas se levantavam no seu espírito.
- E o que fizeram?
- O que podia ser feito? Procurámos Belchior,
mas o cobarde simplesmente desapareceu!
- Nunca apareceu?
Rafael abanou a cabeça.
- Nunca mais foi encontrado.
- E o que fizeram?
- Se não foi encontrado nada pôde ser feito.
Não era o momento de dizer-lhe mais, pensava Rafael. Se ela nada
tinha sabido até então...! Ele não conseguia perceber no que ela estaria a
pensar. Desconfiaria de alguma ligação entre aquela história e a morte de seus
pais?
Diana olhava-o, claramente com alguma questão em mente.
- E sobre os meus pais, o que sabes? - acabou por perguntar.
O que responder-lhe?, pensava.
- Que algo de trágico aconteceu e se pensava que toda a família
tinha morrido; quem sabe talvez até Belchior, algures escondido na casa.
- Minha mãe pressentiu o perigo e tirou-me de lá a tempo. Mas se ela pediu a Alba que procurasse Belchior caso
algo lhes acontecesse, é porque ele não estava lá!
- E que perigo pressentiu a tua mãe? - perguntou Rafael.
- É o que gostaria de saber... Poderia ser apenas o incêndio!
Enquanto ambos mergulhavam nos seus pensamentos sobre o passado, o presente e o futuro, instalou-se o silêncio.
- Preciso de encontrar Belchior ou saber o que aconteceu com ele!
- A minha família procurou-o durante anos sem qualquer êxito!
- Deve haver uma forma... Alguém que possa ajudar?! - Diana
pensava em Selénia.
- Quem?
- Não sei, mas preciso encontrar quem me ajude a compreender e a
controlar esta magia que carrego e não conheço! – disse enquanto caminhava de
um lado para o outro.
- Os druidas da Irmandade podem ajudar-te.
- E dizer-lhes que tenho a marca do dragão?! Ficar ao seu serviço?!
Não é uma ideia que me agrade.
- Mais tarde ou mais cedo terão de saber!
- Prefiro mais tarde do que mais cedo; ganhar tempo para saber o
que fazer quanto a isso. Primeiro tenho de esclarecer o passado.
- ...
- E o que disseram os druidas sobre o que aconteceu?
- Perante as evidências, nada mais havia a dizer!
Diana voltou a aproximar-se, curiosa sobre a possibilidade de existência
de um caminho que não tivesse sido explorado.
- E para além das evidências?
- Procuras defender Belchior?!
- Procuro compreender o que aconteceu!
- Nada mais existe que as evidências!
Rafael respirou fundo, procurando acalmar-se.
- Quem mais poderá ajudar-te senão os druidas? – continuou.
Diana olhou nos seus olhos.
- A minha ajuda seria muito básica. - disse, como se adivinhando o
seu pensamento - Precisas de alguém que conheça o poder do teu dragão!
- Preciso de encontrar Belchior! – disse suspirando.
Diana sentia que pisar aquele terreno era como andar em círculos.
A chave seria Belchior, mas como encontrá-lo?
- E se pedir a ajuda da Deusa? Dos meus antepassados? Ainda nesta
lua teremos a celebração de Samhuin. O momento em que o véu entre os mundos se
encontra mais fino será a altura apropriada para fazê-lo!
Essa era uma possibilidade que não o tranquilizava.
- O que estás a pensar fazer?
- Pedir ajuda a alguém. - dizia, enquanto pensava se seria seguro
falar-lhe em Selénia. Porque não? Ele usava a magia!
- A alguém? Quem?
- Selénia, a Senhora do Bosque.
- Selénia, a feiticeira?!
Diana anuiu em silêncio.
- Não sei se será uma boa ideia!
- O que receias que aconteça?
Ele hesitou na resposta.
- O efeito que poderá ter sobre ti! – disse segurando o pulso de
Diana, virando-o, como se procurasse recordá-la do seu dragão - Ainda não
conheces o poder do teu dragão, como se manifestará ou como controlá-lo!
Ela soltou o seu pulso e afastou-se pensando em silêncio,
mantendo-o de fora. Na sua mente surgia uma imagem de um homem envolto em
trevas, do qual se destacava um olhar malévolo e um sorriso de satisfação. Pensava que a imagem que Rafael criara do seu avô devia estar a influenciar o
seu julgamento. Afastou aquela imagem perturbadora, mas ficara presente uma
ideia que a fez voltar-se para Rafael e olhá-lo com atenção.
- O que receias realmente? – acabou por perguntar.
- Disse-te que receio o efeito...
- Digo para além disso? - voltou a perguntar, interrompendo-o.
- Não estou a perceber...
- Receias talvez que encontre o meu avô e lhe siga as pisadas?
Ele calou a resposta.
- Ou talvez, pelo contrário, queiras que o encontre!... O que lhe
aconteceria, então? Tu mesmo disseste que a tua família o procurou durante anos
para fazer justiça!
Ela olhava-o com
insistência, procurando ler algo, mas nada conseguia captar da sua mente. Aliás, estava convencida que esse era um poder que o seu dragão não lhe daria.
- Não me parece
que o encontres. Acredito que de alguma forma já não vive entre os homens. –
dizia Rafael, procurando escapar à pergunta que não queria ou não sabia responder. Ou talvez até soubesse! Se Belchior estivesse vivo, o seu destino mágico voltaria
a ter sentido e seria fácil de cumprir! Poderia ser?
- Não sei se
essa mulher é de confiança! – acrescentou, procurando dar outro rumo àquela
conversa.
- Eu confio em Selénia!
- Conhecei-la?!
Diana anuiu.
- Ela sabe o
que procuro e dispôs-se a ajudar. Poderá ajudar-me nesta busca... pelo menos chamando até mim
a Visão! Qualquer pormenor que possa descobrir pode ser importante!
- Como é
Selénia?
- Parece-me ser uma boa mulher, disposta a ajudar, com boas palavras... Sinto dela uma energia
forte e... muita tranquilidade! – terminou, olhando-o.
Teria de
conhecê-la, pensava. Sentia que precisava de ficar de olho em Diana. E se ela
encontrasse, de facto, Belchior? Claro que não poderia ser! Se ele estivesse
vivo, não ficaria escondido ao descobrir o que tinha acontecido à sua família! A
não ser que o guardião das trevas, como a tal profecia o chamava, não se
importasse com o destino daqueles que tinham crescido sob a sua alçada! Poderia ser? E
se assim fosse e Diana o encontrasse? Ela também poderia correr perigo! Ou não?
Suas divagações não faziam qualquer sentido! Mesmo que não se importasse com a
sua família, ele iria continuar atrás do dragão do sol, já que existiam
descendentes adultos! Ou mesmo de outro dragão!? Não fazia sentido simplesmente
desaparecer; era óbvio que este se encontrava morto! Preocupava-se em vão.
Diana repetia
o nome de Rafael, tocando-lhe agora no braço para o resgatar dos seus
pensamentos. Ao fazê-lo voltou a ver na sua mente a imagem dos seus dois
dragões completando o círculo. O que poderia significar? Porque surgia tantas
vezes nas suas ideias?
- Desculpa!...
Revia tudo o que sei à procura de algo que me pudesse ter escapado e que
pudesse ajudar!
- Se nada mais encontras, resta-me
procurar Selénia.
- Posso ir
contigo? – Diana parecia não saber o que responder – Talvez o dragão do sol
possa lançar alguma luz sobre a tua demanda!
- Parece-me
que já experimentei a luz do teu dragão e não me ajudou a ver com mais clareza!
- Na dose
certa...! - disse ameaçando um sorriso e levantando as sobrancelhas.
- Parecias estar
sempre a fugir do assunto e agora queres participar da minha demanda?!
- Agora já conheces a
história!... E também gostaria de compreender o porquê!
- E se encontrarmos Belchior?
Ele riu.
- Não me parece possível. Mas quero
saber o que lhe aconteceu!
- Não sei porquê, mas os meus
instintos continuam a dizer-me que posso confiar em ti!
- ...Sim, podes. – acabou por responder, surpreendido pelo facto de Diana parecer confiar mais em si do que ele próprio. Não deveriam ser os seus instintos a
falar, mas a sua ingenuidade, pensava. Iria, no entanto, ajudá-la. Também queria
saber mais. Queria saber porque o seu destino mágico não se alterara.